Por Luís Fernando Silva1 e Bernardo Fóes Bianchini2
Dentre as inúmeras e profundas modificações que a Emenda Constitucional nº 103, de 13 de novembro, veio promover no sistema de previdência pública brasileira, uma salta os olhos pela gravidade das consequências que pode gerar para milhares de servidores públicos e pelo flagrante desrespeito aos direitos e garantias fundamentais esculpidas no art. 5º, XXXVI, da Carta da República.
Trata-se do disposto no art. 25, § 3º, da referida Emenda, que assim define:
Art. 25 – (…) § 3º Considera-se nula a aposentadoria que tenha sido concedida ou que venha a ser concedida por regime próprio de previdência social com contagem recíproca do Regime Geral de Previdência Social mediante o cômputo de tempo de serviço sem o recolhimento da respectiva contribuição ou da correspondente indenização pelo segurado obrigatório responsável, à época do exercício da atividade, pelo recolhimento de suas próprias contribuições previdenciárias. (grifamos).
O dispositivo em questão alcança os servidores públicos estatutários, submetidos aos chamados “regimes próprios de previdência”, e que hajam nele averbado, para fins de aposentadoria, períodos de trabalho exercidos em atividades privadas, seja na condição de empregado, empresário, contribuinte individual, regime de economia familiar, etc), submetidas ao Regime Geral de Previdência Social (RGPS/INSS), em razão do direito à “contagem recíproca”, que permite que períodos de trabalho vinculados a determinado regime previdenciário possa ser averbado em outro, para fins de aposentadoria, cabendo a estes regimes a respectiva compensação financeira entre sí.
O que o dispositivo constitucional em questão faz agora, na prática, é determinar a revisão de todas as aposentadorias de servidores públicos estatutários que hajam averbado tempo de serviço oriundo do RGPS/INSS, de modo a verificar se estes períodos laborais foram devidamente acompanhados (no RGPS) da respectiva contribuição de responsabilidade do segurado, seja na condição de empregado, de empresário ou de contribuinte individual, incluindo nesta exigência a demonstração da ocorrência da respectiva indenização ao INSS, se o período laboral em questão se deu sob regime de economia familiar (tempo rural, por exemplo).
Aqui é preciso lembrar que até 1998 (antes da Emenda Constitucional nº 20), o sistema previdenciário brasileiro estava organizado com o pilar “tempo de serviço” e não sob “tempo de contribuição”, de modo que o que o trabalhador vinculado ao INSS estava obrigado a comprovar era o trabalho efetivamente realizado, como por exemplo aquele anotado na respectiva Carteira de Trabalho e Previdência Social, tendo reconhecido este tempo de serviço mesmo que o respectivo empregador não houvesse, à época, recolhido a respectiva contribuição patronal e haja se apropriado indevidamente da contribuição a cargo do empregado, efetivamente realizada em sua remuneração mensal.
Logo, há milhares (talvez milhões) de trabalhadores brasileiros – alguns deles hoje na condição de servidores públicos estatutários -, que tiveram reconhecidos e averbados junto ao RGPS/INSS períodos de trabalho sem que as respectivas contribuições (dele e do respectivo empregador) houvessem chegado ao INSS, sendo esta a razão pela qual a citada EC nº 20, de 1998, ao adotar o modelo de “tempo de contribuição”, tratou de assegurar que o “tempo de serviço” anterior fosse considerado “tempo de contribuição”, para todos os efeitos legais.
Por outro lado, há milhares de segurados do INSS – alguns deles hoje na condição de servidores públicos -, que tiveram reconhecidos e averbados períodos em que trabalharam em regime de economia familiar, sem a correspondente contribuição ao INSS e sem que houvessem, posteriormente, recolhido a indexação à Previdência.
Em ambas situações, portanto, não haverá registro da respectiva contribuição ou indenização no RGPS/INSS, o que acarretará aos servidores públicos – segundo o que determina o art. 25, § 3º, da EC nº 103/2019 -, a anulação das aposentadorias concedidas com a utilização dos respectivos períodos laborais não contribuídos, ou a exclusão destes períodos dos assentamentos funcionais destes servidores, dificultando-lhes e retardando o acesso à futura aposentadoria.
Em suma, para aqueles servidores que já estão no usufruto de aposentadorias a exclusão de períodos de trabalho não-contribuídos acarretará a revisão desta aposentadoria anteriormente concedida, podendo esta passar de voluntária integral para voluntária proporcional, por exemplo, se o período de tempo de contribuição remanescente for igual ou superior a 25 (vinte e cinco) anos, para as mulheres, ou a 30 (trinta) anos, para os homens. Se for inferior, entretanto, haverá a obrigação do respectivo servidor retornar à atividade, para completar o tempo de contribuição faltante para a aposentação, excetuando-se desta obrigação apenas os servidores que já contem com pelo menos 75 (setenta e cinco) anos de idade, casos estes em que a anterior aposentadoria voluntária será convertida em aposentadoria compulsória, passando seus proventos a corresponder ao tempo de contribuição remanescente, podendo acarretar em proporção inferior a 25/30 (vinte e cinco, trinta avos), para as mulheres, ou inferior a 30/35 (trinta, trinta e cinco avos), para os homens.
O descalabro da situação emerge não só do fato da EC nº 103/2019 estar criando regra constitucional com efeito retroativo – contrariando até mesmo a garantia dada pela EC nº 20, de 1998, quando da transformação do modelo de “tempo de serviço” para “tempo de contribuição” -, mas também porque alcança situações consolidadas pelo tempo, com o que desrespeita o princípio constitucional da segurança das relações jurídicas, ao tempo em que torna “letra morta” o necessário respeito aos direitos adquiridos e aos atos jurídicos perfeitos, esculpidos no art. 5º, XXXVI, da Carta da República, de resto considerados “cláusulas pétreas”.
Diante da magnitude da referida lesão ao ordenamento constitucional vigente, esperamos que o Supremo Tribunal Federal cumpra o seu papel de guardião da Constituição, e dê pela inconstitucionalidade do § 3º, do art. 25, da EC nº 103, de 2019, e que as organizações da sociedade civil percebam e combatam firmemente tais iniciativas governamentais, que de há muito já transbordaram da necessária razoabilidade e respeito à ordem jurídica.
Florianópolis, 22 de novembro de 2019.
1 Membro da Comissão Especial de Direito Previdenciário do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; Pesquisador-colaborador do Observatório de Recursos Humanos da Escola Nacional de Saúde Pública; Advogado integrante do Escritório SLPG – Silva, Locks Filho, Palanowski & Goulart, Advogados Associados (http://www.slpgadvogados.adv.br/), e do CNASP – Coletivo Nacional de Advogados de Servidores Públicos (http://www.cnasp.adv.br); Curriculum lattes no endereço http://lattes.cnpq.br/6746291031905519; Contato pelo email fernando@slpgadvogados.adv.br.
2 Secretário-Geral da Comissão de Direito Previdenciário – Regime Próprio da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Santa Catarina; Especialista em Direito Previdenciário pela Faculdade CESUSC; Advogado integrante do Escritório SLPG – Silva, Locks Filho, Palanowski & Goulart, Advogados Associados (http://www.slpgadvogados.adv.br/), e do CNASP – Coletivo Nacional de Advogados de Servidores Públicos (http://www.cnasp.adv.br); Contato pelo email bernardo@slpgadvogados.adv.br.